top of page
Foto do escritorAristides Barros

ENTREASPA

A. Bernardo Cerântola *


Ilustração: Elena Cerântola 


Meus filhos dizem que sou meio chato e por tão repetitivo, a pecha vem como um ditado, amenizado pelo ‘meio’ que enfiam no rifão por me amarem demais. Fosse um desafeto, tudo viria por inteiro, desses de estourar balança de estrada por excesso. 


Tenho lá minhas manhas, de fritar ovo sem quebrar gema, não me sentar à mesa sem guardanapo, botar os pés pra fora das cobertas, escolher o corredor do avião, beber leite condensado na colher, apagar a luz solitária, adormecer agarrado ao travesseiro... e longa fila de quase-tocs, que na honesta leitura de mim mesmo, nada dessas extravaganciazinhas tem apelo obsessivo. 


Nos meus passos sexagenários colecionei como um juntador de coisas, louvores e implicâncias. Os primeiros, costumo guardar e sorver em isolamento de monge, mas aqui, agora, despejo parte dos segundos. 


Lugar comum pra mim os concebo em banheiro público, auditório de TV, fila de confessionário. Na expressão verbal ou escrita me irritam e dói como se um pica-pau confundisse meus testículos com tronco de palmeira. Há um punhado delas com o dom de azedar meu dia. 

Listei umas poucas e vou me esforçar por enfileirá-las e ir até o fim sem vomitar. 


‘É o seguinte’ –existe expressão mais inútil? Não me lembro de entrevistador, repórter, comentarista, CEO, político, que emplaque seu trabalho sem cuspir um, dois, dezenas de é o seguinte como um empuxo à próxima frase. Soa como uma muleta onde descansam enquanto formulam o pensamento. 


Essa praga virótica extrapola o meio trabalhista e vive plena na boca dos parentes, amigos, inimigos, turistas e em todo lugar onde pisam os humanos. 

Não leio sinais de surdos-mudos, mas aposto que também eles têm isso ensaiado na ponta dos dedos. 


Depois de uma estocada dessas, pode esperar que vem o aspas cravado teatralmente no ar com os dedos em paralelo vibrando como se fossem riscar o espaço para deixar sua marca. Pior, anunciam a tirada filosófica valorizando o vozeado com um ‘entreaspa’, assim, singularizada e espremida numa só palavra num cuspe gramatical. 


Que mania é essa de literalizar o som? Não somos bons o suficiente para dar o tom verbal a uma ideia, de forma a que percebam o aspas na entonação? Ou desaprendemos a arte da expressão? 


Somos PhD em caretas, micagens, olhares, que ilustram uma ideia com muito mais encanto que o rabiscar aéreo de um par de aspas –ah, isso me dá nos nervos! Pior, que meu ego altruísta ainda responde com um meio sorriso, forçado, mas tão verdadeiro quanto as aspas fora do papel. 


O mais temeroso é esse minúsculo comportamento de verbalizar a literatura no ar crescer e matar a escrita no uso obstinado do éter como lousa virtual, riscada a dedo na função de giz. 


Imaginaram a gracinha de na mesma balada das aspas, representarmos a vírgula, o ponto de interrogação, de exclamação, as reticências, a acentuação... a cedilha –meu Deus! Uma conversa de contorcionistas. 


Como seria o hífen? Meio de ladinho, na altura da cintura, como se o corpo fizesse parte da frase. O destro riscaria à direita, o canhoto, à esquerda. Claro, com uma certa ginga de corpo prá dar mais credibilidade. 


O travessão... ah, esse se riscaria na altura dos olhos, num traço longo e enérgico pra impor autoridade -afinal, o protagonista vai falar!


E o ponto final? Prá diferenciar dos outros e dar por encerrada a fala, melhor cravar o indicador no ar com a convicção do malhete do juiz promulgando pena. Imaginando a cena, penso nas mulheres e provo de um certo consolo: não são capazes desse gesto final. Prá não mornar o pique, armariam um hang loose praieiro como quem fala ao telefone e emendariam um ‘teligomaistarde’, numa só frase pra selar compromisso. 


Prá relaxar um pouco dessa viagem nauseante pela pontuação manual, vou sair agora e procurar a Delegacia mais próxima. Quero um papo-cabeça com um detido em flagrante, algemado nas costas. Mereço!


O texto faz parte do livro A Ânsia Calma de Entender



* A. Bernardo Cerântola é escritor. Sobre o seu trabalho ele afirma: muitas vezes assumo a escrita de uma criança, outras, de um velho e assim, caminhando por diferentes personagens, me travisto de inúmeras formas de expressão.


Facebook - A Bernardo Cerântola / Instagram - a.bernardocerantola


27 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page