Da “leitura de bíblia nas escolas”: uma reflexão
- Aristides Barros
- 19 de mar.
- 8 min de leitura
Por Claudemir Belintane (Prof. Sênior da Universidade de São Paulo)

O Projeto do vereador-pastor da Assembléia de Deus Legislativa de Bertioga, que vem propor “a leitura da Bíblia sagrada nas escolas da rede pública e particular de ensino do município de Bertioga” é anticonstitucional, impertinente e perturbador da ordem escolar. Para ajudar os vereadores e talvez também o Mistério Público, como especialista em educação, pretendo esclarecer alguns pontos importantes sobre a inconstitucionalidade desse projeto e como suas medidas afetam o modo crítico de ensinar e de aprender, que é a função primordial do ensino.
QUAL SERIA A “BÍBLIA SAGRADA” A SER USADA EM SALA DE AULA?
Não se pode negar que as escolas podem fazer estudos sobre bíblias, mas não partindo do pressuposto de que há uma Bíblia X, que seja “sagrada” (está no projeto do vereador e só isso já o inviabiliza). Infelizmente, muitas pessoas acreditam na existência de um livro único, escrito ou inspirado por Deus. Creio que o povo até percebe as constantes divisões entre evangélicos pipocando pra todo lado (por exemplo, rompe-se com uma Assembleia de Deus e se abre uma Assembleia de Deus Sul Fluminense em Bertioga ?!), contudo continua acreditando que existe uma Bíblia sagrada e que deve ter um jeito correto e verdadeiro de interpretá-la. É a tal fé popular, contudo esse tipo de fé nada tem a ver com educação livre e laica, que não pode prescindir da História e das consolidações do conhecimento científico.
Seria importante, por exemplo, tópicos de História, Filosofia e até de Ciências mostrando o surgimento de textos ditos sagrados produzido por homens (escribas) e não por Deus ou mesmo sob a inspiração dele. É muito relevante mostrar e situar na História a origem desses livros em relação a outros que existiram bem antes das bíblias hebraicas. Sem cotejar as bíblias com fatos históricos e científicos, sem tematizar sua origem como fonte de alguma verdade, a leitura seria sempre religiosa e dependeria da fé e, neste caso, infringe a Constituição, que não tolera a fé desta ou daquela religião como objeto de ensino. Se a Bíblia é considerada sagrada, sua leitura deverá ser proibida em escolas, cujas missões residem em ensinar e aprender por meio das ciências e das artes.
SAGRADOS SÃO O SUOR DO(A) TRABALHADOR(A) E SEU DIREITO DE APRENDER COM LIBERDADE
O suor do povo pra favorecer uma classe dominante sempre esteve em disputa desde o início dos tempos. Desde a construção das primeiras cidades na Mesopotâmia (como a cidade de UR, 3.800 a.C, onde se iniciaram algumas histórias mitológicas presentes nas bíblias hebraicas) até os dias de hoje, passando pela construção do Templo de Salomão em Judá (X a.C a VII a. C) e pela construção do Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus, inaugurado em 2004 (Brás, São Paulo). Em todas essas construções, o sangue e o suor do povo emplastrou argamassas e escorreu pelos tijolos.
Talvez seja necessário abordar as bíblias mesmo, mas não apenas dentro de uma delas, em suas páginas, assumindo a “fé” evangélica pra alavancar a política de pastores de má fé. Também não se pode aceitar o velho argumento de evangélicos que a cada possibilidade de cotejar as fantasias da fé à realidade, cotejando-a a outras leituras, atribui-se o gesto intelectual às “astúcias de Santanás”. Satanás é o maior aliado das lideranças da fé, pois é o instrumento de ódio que usam para amedrontar pessoas crédulas.
COMO NASCEM OS LIVROS RELIGIOSOS E POR QUÊ?
Milhões de pessoas foram mortas em guerras religiosas. Os incentivos ao ódio e à violência enfureciam e ainda enfurecem populações e os transforma(va)m em guerreiros fanáticos – sempre sob o comando de seus líderes, que diziam defender a fé, a verdade divina, a honra da pátria e da família contra o inímigo demoníaco.
Quando o imperador Constantino levou Roma a assumir o subversivo movimento cristão (325 d.C), passou em seguida a dominar o movimento e a matar “hereges” - já de cara mataram milhares de Arianos (discípulos de Ários, que viam Jesus como um líder exemplar, mas não idêntico a Deus – não seria divino). Aplica também intensa perseguição a outras seitas cristãs, sobretudo as mais originárias, aquelas que reivindicavam a essência do cristianismo, baseando-se no desprezo à propriedade e na opção por uma vida simples e pobre – para esses ferverosos seguidores, a vida econômica da prosperidade não era cristã, o que provocava a ira dos poderosos que viviam luxuosamente em grandes palácios.
A partir desse fluxo de ódio e sangue se estabelece no ocidente a Igreja Católica Romana, mãe do catolicismo de hoje e também do protestantismo, inclusive daquele pentencostalismo da Assembléia de Deus. Somente no século XVI surgem, das entranhas do catolicismo, as manifestações protestantes, que vão resultar em mil fragmentos de “sagradas discordâncias” até chegar nessas igrejas de pastores que se autoconcebem como representantes de Cristo e ao mesmo tempo servidores da direita política.
Depois da morte de Constantino, sobe ao poder um grande fanático, Teodósio, que mandou massacrar todos os intelectuais de Alexandria que não estivessem de acordo com o cristianismo romano. Hipátia (ou Hipacia) era uma valorosa cientista da Biblioteca e, como era mulher, passou a ser uma afronta para os bandos de fanáticos religiosos que a assassinaram com requintes de crueldade (foi arrastada pela cidade, pisoteada e esquartejada).
Pra situar essa verve odiosa e mostrar que ela não morreu é importante relembrar que o pastor-vereador, autor do projeto, foi considerado réu em processo por discriminar e menosprezar a comunidade LGBTQ+ em plena sessão da Câmara Municipal de Bertioga. Seriam essas vítimas as novas Hipatias da modernidade?! O exercício do fanatismo já é muito claro e obviamente também põe sob suspeita as intenções do projeto.
Com a leitura de uma certa “Bíblia sagrada” nas salas de aula poderemos ter mais ódio circulando, mais intolerância diante das diferenças. Essa intolerância se fortaleceu politicamente com Bolsonaro e seus pastores, o ato de pôr bíblias deles em sala de aula é o primeiro degrau de uma escalada discriminatória e de divisão das turmas entre sagrados e demoníacos. Aí vem mais ódio!
A BÍBLIA DA ASSEMBLEIA DE DEUS E DE PROTESTANTES EM GERAL
As edições e reedições da Bíblia desse grupo de religião pentencostal tem como fonte a tradução para o português de João Ferreira de Almeida (século XVII), que por sua vez se baseia nos chamados textos massoréticos (copiados por escribas judeus a partir do estabelecimento do Tanakh - Velho Testamento). O “novo testamento” foi a primeira tradução de Almeida, estabelecida a partir do chamado texto receptus (a partir do grego). Almeida havia se convertido ao protestantismo e almejava uma bíblia diferente da “vulgata” católica, para ser lida em sua língua, já que, com o surgimento da imprensa, os livros poderiam ser publicados em larga escala. Esse “texto receptus” (“recebido”) era compreendido como o mais fidedigno, contudo com a descoberta de antigos manuscritos, essa versão passou a ser questionada também. Hoje a Nestle-Aland é a matriz considerada mais confiável, não por ser sagrada e retratar a verdade, mas por tratar os antigos manuscritos com mais cientificidade e menos fé.
Só pra comparação: a Bíblia Católica Apostólica Romana, a vulgata, tem outras fontes, baseia-se na Septuaginta, que fora traduzida a partir de cópias hebraicas e aramaicas feitas por escribas judeus. Só aqui já temos boas divisões no “mundo sagrado” das bíblias.
Só pra se ter um contraponto, os evangélicos tentam proibir folclore brasileiro em festas e eventos escolares (Saci, Lobisonem, Curupira, Festas Juninas etc.), contudo fracassam muitas vezes porque esses personagens são folclóricos e não sagrados.
O “CÓDICE DE LENINGRADO” É UMA DAS PRINCIPAIS FONTES DA BÍBLIA DOS EVANGÉLICOS – COISA DE COMUNISTA?
Um dado interessante para quem não gosta dos Russos: boa parte dos textos massoréticos que sustentam as bíblias protestantes e evangélicas estão no “códice de Leningrado” – isso mesmo, na Rússia, em São Petersburgo. Não teriam os comunistas transformado esses textos em mensagens demoníacas!?
As traduções (do hebraico, do aramaico, do grego, de cópias deste ou daquele grupo) já deixam claro que a babel das línguas foi e será sempre um grande empecilho para se ter uma linguagem divina única - como dizem os italianos: traduttore traditore – tradutor traidor. Aliás as técnicas dos massoretas (escribas hebreus) para transcreverem os textos sem ambiguidades são partes dessa luta contra as ambiguidades, o que mostra o quão escorregadia pode ser a palavra do Deus dos hebreus.
As divergências de fontes, de modo de tradução ou mesmo as decisões sobre quais livros incluir e quais bani-los sempre foram polêmicas e complexas desde quando os escribas de Judá trabalhavam na Babilônia de Nabucodonosor pra unificar um extenso folclore em um livro único para a formação do povo judeu. Na época (século VI a.C), os próprios escribas tratavam os textos bíblicos como mundanos, nada sagrados, apenas materiais para uma coletânea coerente que pudesse justificar a origem e a unificação das tribos de judá, que eram politeísta e facilmente seguiam outros povos. Submeter todos a um Deus único facilita a aceitação da lei e naturaliza a obediência – Maomé também sabia disso e fez o Alcorão pra unificar os árabes. Tudo isso pode ser matéria de História, de Filosofia.
Mas voltanto à Bíblia da tradução de Almeida, mesmo esta que é bem conceituada, pois foi baseada em textos hebraicos e aramaicos (velho testamento) e gregos (novo testamento), também é interpretada e mesmo alterada de acordo com a conveniência desta ou daquela religião. Atualmente existem várias versões, inclusive as das Assembléias de Deus, que adotou recentemente a Nova Almeida Atualizada (NAA), com vocabulário modificado, frases mais curtas, uso de “você” e “vocês”, para que o baixo clero possa se alinhar a este imaginário sacralizado durante os cultos . Há também igrejas que aceitam as influências da versão Nestle-Aland, que foi traduzida e compilada com mais rigor científico e considera novos manuscritos descobertos mais recentemente.
Os especialistas mostram que todos os líderes que construíram grandes impérios embasavam suas autoridades em crenças, em ancestrais heróicos, em narrativas fantasiosas – só para o leitor ter uma ideia: vários episódios do pentateuco (cinco livros inicais da Bíblia, que não são históricos, mas sim míticos) estão presentes na História dos Sumérios, dos Acadianos, dos Caldeus, da Pérsia, da Babilônica. O dilúvio aparece na Epopeia de Gilgamesh, muito antes dos tempos atribuídos aos episódios bíblicos, o Noé sumério chamava Utnapishtim; Ciro, rei dos Persas, também foi o moshé-menino abandonado no barquinho à deriva até se tornar Ciro, o Grande (qualquer semelhança com Moisés é mera coincidência!?), sem falar nos dez mandamentos que foram inspirado no código de Hamurabi e a crença no Deus único que veio do Egito.
Só pra encerrar estas polêmicas sobre qual Bíblia seria a “sagrada”, caberia perguntar ao pastor-vereador se a Bíblia Católica é sagrada e única verdadeira tanto quanto a da Assembleia de Deus (que deve ser a Nova Almeida Atualizada - NAA). Também seria bom indagar sobre os demais livros “sagrados”, que têm bilhões de seguidores em todo o mundo : Alcorão (Islan), Vedas (Hinduismo), Tripitaka (Budismo) e muitos outros. Todos eles juram por Deus que seu livro é mais sagrado do que os demais. É essa imposição que a ciência e o ensino não podem aceitar, é essa posição que torna o projeto do vereador inconstitucional.
Um salmo pra encerrar a conversa: sagrado é o suor e o sangue dos que trabalham pra sustentar templos de Salomão e manter os salários altíssimos de líderes religiosos, além de suas políticas de direita que vão contra a classe trabalhadora.
Seguem duas dicas:
NO YOUTUBE : assista ao canal “História Estranha” apresentado pelo pesquisador Henrique Caldeira.
KAREN ARMSTRONG - escreveu sobre livros sagrados, sugiro “Uma história de Deus”. Companhia das Letras; “Biblia: uma bibliografia”. Editora Zahar (Coleção Livros que mudaram o mundo”.
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